“Elinel, meio-elfo, filho de Sulinel (elfo) e Elora (humana), doze anos, flor da infância. A família vivia feliz em Comodoro Suriel, uma cidade estado de integração entre homens e elfos ao sul do Império.
Tanto o Império quanto o reino dos Elfos da Floresta do Sul, Eliredand, não aceitavam mestiços e raças estrangeiras. A família sabia que, se existia algum lugar em que poderiam viver, era no Império. Mas para facilitar a vida desses excluídos, existia cidade como as zonas de integração. Assim, os estranhos podiam viver com menos problemas.
Entretanto, a felicidade dessa família entrou em colapso no dia que o pequeno Elinel chegou em casa, com as roupas rasgadas e sangue lhe escorrendo pelas pernas. O olhos cheio de lágrimas encontraram os da mãe, que no mesmo instante desabou sobre os joelhos e desatou a chorar.
— Não tive culpa, mãe! — choramingou o jovem. — Não tive culpa!
***
A notícia do estupro do jovem elfo se espalhou pela cidade. Ninguém sabia quem era o estuprador e o rapaz não lembrava de conhecer o criminoso de algum lugar.
Cidades como Comodoro Suriel eram grandes favelas, juntando exilados, expatriados e bandidos. Os governos nunca resolviam os problemas de criminalidade, e apesar de terem integração no nome, mestiços, elfos e outros raramente eram integrados ao reino Humano. E assim como esperado, as autoridades da cidade deram o caso como finalizado, uma vez que o menino não reconheceu nenhum dos possíveis agressores.
— Eu não aguento mais — Comentou Sulinel, escorando no balcão de um bar. — Ser obrigado a viver nesse lixo de lugar.
— Calma, meu chapa! — Disse um anão, subindo em um banco para conversar com o elfo. — Não vá perder o controle agora.
— Mal consigo dormir, sabe? — continuou Sulinel, não dando atenção para o anão. — Fugir daqui não é uma opção, mas não consigo mais viver pensando que quem atentou contra meu filho vive por aí, solto.
— Já pensou em um clarividente?
— Clarividente?
— Sim, sim — continuou o anão, dando um grande gole em uma cerveja. Sua voz saia rouca entre os pingos de cerveja. — Feiticeiros que estudam visões e profecias. Eles podem visualizar um momento do passado. Eu sei onde mora um.
Não acreditando muito no anão, Sulinel resolveu tentar. Junto de seu filho, se dirigiu até a cabana do tal feiticeiro.
O vidente era um elfo velho, com longas barbas e pele enrugada. Seu cabelo havia caído, destacando uma grande careca circular, com duas enormes orelhas pontudas, uma em cada lado.
— Você quer descobrir quem atentou contra seu filho? — comentou o elfo feiticeiro. — Isso vai ter um custo. Você sabe né?
Sulinel estava preparado para isso e jogou a bolsa de ouro sobre a mesa. Então o feiticeiro tocou a grande bola de cristal com seus dedos finos e ressequidos. A esfera brilhou, assim como os olhos dele.
— Sim, sim! — comentou ele, ainda em transe. — Pablo. Filho do marceneiro. Ele levou seu garoto para o beco, o ameaçou com uma faca. E depois…
E depois Sulinel sabia muito bem. Com aquelas palavras gravadas na mente, seguiu seus dias sem saber o que fazer. Poderia armar contra Pablo e dar um fim a ele. Ou talvez tentar avisar as forças policiais, mas ele sabia, que o governo não faria nada, afinal, a informação do feiticeiro não poderia ser usado como prova.
Entretanto, certo dia um pouco antes do almoço, Sulinel já nadava em um oceano de cerveja. Bêbado e sentindo o coração apertado, deixou escapar o que pensava e o nome do Pablo.
— Tenho certeza que foi — falou o estalajadeiro, que era humano. — Esse rapaz, Pablo, sempre odiou elfos. Eu vi ele dando um chute em um gnomo uma vez. Sem piedade.
— Ele é um vagabundo — comentou outro Elfo, sentado em uma mesa perto de Sulinel. — Finge que vai para aula, mas vive com seus amigos encrenqueiros aprontando por aí.
— Pensei em… — Tentou falar Sulinel, mas foi interrompido pela mulher do estalajadeiro que ouvia de longe.
— Pois você deve sim dar uma surra nesse rapaz. Onde já se viu! Atentar à uma criança? Não existe perdão para uma coisa dessas.
— Mas eu já comuniquei a polícia. E o que esse vidente falou, não são provas para prendê-lo.
— Não é de prisão que precisamos — gritou um elfo que também estava bêbado, e ouvia de longe. — Aqui nessa cidade apenas nós podemos fazer justiça.
— Sim! Justiça!
— Justiça!
Antes mesmo que Sulinel pudesse falar mais alguma coisa, o grupo formado por umas cinquentas pessoas marchava pelas ruas.
Quando chegaram na marcenaria, o grupo começou a gritar, ordenando que Pablo viesse ao lado de fora. Um homem velho e barbudo, da pele morena e marcada pelo sol surgiu na janela.
— Pablo não está — falou com paciência o marceneiro. — O que querem?
— Queremos justiça! — Gritaram uns.
— É! — gritou um elfo bêbado, dando um passo à frente. — Você sabe o que seu filho fez? Ele estuprou uma criança. O que você pensa disso?
— Certo — comentou o marceneiro, levantando a coluna e ponto as mãos no parapeito da janela. — Então avisem a polícia. Se meu filho for culpado, que seja preso.
— Aqui ninguém vai chamar a polícia!
Rápido como uma raposa, um elfo enfiou a mão dentro da janela, agarrou o marceneiro e arremessou ele para fora. O velho, sem muita resistência, caiu de costas no chão de terra.
— Seu filho vai morrer — gritou um outro manifestante. — Ele é um bandido por culpa sua! Você não o criou! Não o educou! Aquele imprestável.
— Meus senhores — comentou o marceneiro, tentando se levantar. — Vamos conversar…
— Sem conversa — gritou um outro manifestante, se aproximando e dando um murro nas costas do pai de Pablo. — Se você tivesse educado seu filho, ensinando o que é certo, ele não teria cometido uma barbaridade dessas.
O marceneiro tentou se levantar mais duas vezes, mas foi impedido todas as vezes. Agora a multidão circulava o marceneiro e eram tantas mãos lhe empurrando que sequer conseguia levantar a cabeça.
O grupo continuava clamando por Pablo, apesar de manter o pai ali, sob controle. Foi então que uma bota, que ninguém sabe de quem era, entrou no centro do grupo e acertou a perna do marceneiro.
O primeiro chute foi o estopim do que veio em seguida. Outros pés chutaram o corpo indefeso no chão. Os chutes eram leves, e mais humilhavam o homem do que machucavam. Mas um especial entrou e acertou a cara do marceneiro, abrindo o supercílio e esparramando sangue sobre a poeira do chão. Depois outro, e outro. O terceiro chute acertou a boca, e quebrou dois dentes da frente. Um dos dentes saltou e rolou pelas pedras de cascalho.
Naquele momento, eram tantos chutes, que um barulho de costela quebrada se destacou no meio da bagunça, e então Sulinel percebeu que agora usavam paus e pedras para agredir o homem.
Antes mesmo que pudesse ter noção do que estava acontecendo, o marceneiro perdeu sua vida, ali, no meio daqueles chutes e pauladas.
***
Dias depois, no quartel da polícia, Sulinel levou seu filho Elinel para um reconhecimento. Dos dez humanos apresentados, Elinel não reconheceu nenhum.
— Eu acho que ele era elfo, pai — comentou, depois de olhar para os homens, se referindo ao criminoso que lhe atentou.
O que Elinel não sabia, era que entre os dez homens, estava Pablo, o filho do marceneiro espancado até a morte, naquele momento, inocentado pela própria vítima do crime.
E Sulinel também não sabia que o vidente era um farsante, que morava na cidade e ganhava dinheiro enganando os outros.
A justiça com as próprias mãos, naquele dia, havia falhado.”
***
Toda essa história poderia ser uma simples fantasia, se não fosse verdade [1]. Trocamos elfos por humanos. Videntes por informações vindas de redes-sociais e nomes fantasiosos por reais.
Outra história é a de um pai de família[2] que foi morto, linchado até a morte, confundido com o verdadeiro criminoso. Também temos o caso que até tem nome, Justiceiro do Carnaval [3].
A maioria dos linchamentos que encontrei envolverem estrupro ou estupro com pedofilia. Me parece que esse assunto é o que mais enaltece o sentido de “realizar justiça com as próprias mãos”.
Entretanto, de todos os linchamentos, alguns deles leva a população a humilhar ou assassinar a pessoas errada. Onde ambos os lados saem perdendo… tanto quem morreu ou foi humilhado injustamente, quanto ao assassino, que geralmente vem a se arrepender pelo que cometeu.
Linchamentos são eventos que permeiam a história e estão presentes em nossa sociedade, mesmo sendo considerado algo que não devesse ser realizado. Muitas pessoas, ao parecer, acreditam que essa é a única maneira de fazer justiça, já que o estado ou é lento, ou ausente, ou favorece alguns, etc.
Ao meu ver, essa é uma situação sensível. Se um estuprador não é preso porque a justiça é lenta ou “passa pano”, eu me revolto e fico indignado com um criminoso desse nível solto por aí.
Por outro lado, discordo de linchamentos. Acredito que o papel de punir é do estado, que faz as leis e as aplica, e tem o dever de fazer sendo justo com todos.
E você, o que acha?
Referências:
[1] – Linchamento do Pai
[2] – Mataram um inocente
[3] – Justiceiro do Carnaval
[4] – Artigo mais amplo
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